Pós-Modernidade
e
Risco na Bacia Hidrográfica do Alto Paranapanema:
a
construção social da sub-política ambiental no
município de Piraju (SP).

Autor:
José Luiz F. Cerveira Filho*
RESUMO
Durante o século
vinte a indústria
hidroelétrica foi responsável pela maior parte da oferta de
energia no Brasil. Contudo, mais recentemente ela tem sido apontada como
uma
das grandes responsáveis pela ampliação da
degradação ambiental. A partir de diversas evidências sobre
danos impetrados ao ambiente natural, algumas localidades destinatárias
desses projetos hidroelétricos passaram a refletir de maneira mais
aprofundada sobre os riscos sociais e culturais intrínsecos ao
desenvolvimento da matriz energética. A presença sistemática
de problemas nesse campo ambiental trouxe uma possibilidade real de
interferência social, via novos arranjos políticos, e
sub-políticos, através de novas instituições
sociais, seja no âmbito federal, estadual e, até mesmo, municipal,
como certos institutos jurídicos locais. Se por um lado o reconhecimento
que tais atividades degradam o meio ambiente não garante que medidas
serão tomadas, por outro contribuem em grande medida para o
desenvolvimento de novos padrões morais de sociabilidade e
ações políticas. O objetivo desse artigo é o de
compreender e apresentar quais foram as principais motivações
sociais para que o município de Piraju (SP) elaborasse e aprovasse
recentemente um conjunto de medidas altamente restritivas às atividades
hidroelétricas. Também nos interessa expor como se deu o processo
de construção social de um marco regulatório
jurídico-reflexivo de competência municipal, e em que medida o
estudo desse processo construcionista pode corroborar com algumas
teorias
sociais contemporâneas. Através de um estudo de caso, procurou-se
compreender a trajetória de um grupo local ideologicamente atado ao
ideário ambientalista, e, como variante desse interesse, a
análise de com o alguns questionamentos considerados de cunho
pós-modernos colaboraram para a desconstrução do
desenvolvimentismo no campo da hidroeletricidade.
Palavras-Chave: Pós-modernidade;
sub-política;
energia hidroelétrica.
Introdução
Na parte inicial
desse artigo pretendo fazer uma breve revisão teórica sobre a
Sociologia Ambiental. Trata-se de uma compreensão preliminar sobre as
suas origens e perspectivas, onde apresento as suas bases teóricas e
metodológicas com o intuito de entendê-la e situá-la como
uma disciplina emergente para o estudo dos problemas socioambientais. A
fim de
situar o campo de investigações teóricas em que se insere,
discorro, inicialmente, sobre a sua vertente construcionista (Hannigan,
1995),
como esta aborda teórica e metodologicamente os problemas
socioambientais (Buttel, 2000), e também como, a partir desta vertente,
podemos estabelecer interfaces com abordagens originadas de outros
campos das
ciências para o estudo dos problemas socioambientais.
Posteriormente,
faço referências as teorias sociológicas
contemporâneas que debatem a ontologia pós-moderna, caracterizada
pelos riscos ambientais e pelas incertezas e controvérsias
científicas (Guivant, 1998). Apresento nessa parte as principais teses e
idéias de alguns dos teóricos sociais contemporâneos mais
influentes (Beck, 1997; Giddens, 1991, 1997), procurando contribuir para
o
debate acerca de alguns de seus temas, como a modernização
reflexiva, a sub-política e a reflexividade social, por exemplo. Na
parte final do artigo, apresento um conflito social envolvendo uma
grande
corporação do setor hidroelétrico (Companhia Brasileira de
Alumínio - CBA) e um grupo de ambientalistas (Verdes) como um
típico estudo de caso para a análise socioambiental, onde destaco
os conceitos da ‘cultura do risco’ e enfatizo o desenrolar de um
controvertido projeto de aproveitamento de potencial hidroelétrico em um
pequeno município do interior paulista, obstaculizado por um tipo de
ação condizente com a alta modernidade: a sub-política.
Esclareço que
a opção pela técnica do estudo de caso impôs-se por
compreender que, enquanto modelo de levantamento de dados empíricos, ela
permite o acesso a informações privilegiadas e detalhadas sobre a
realidade, onde os processos sociais se desenrolam concretamente e,
também, por entender que um estudo de caso se caracteriza pela busca da
maior profundidade possível de informações, o que permite
a problematização de questões que poderiam passar
despercebidas em estudos muito abrangentes.
Sociologia Ambiental: um ponto de
partida
Buttel
(2000) caracteriza a Sociologia Ambiental como um esforço para descobrir
e resgatar a materialidade da estrutura e da vida social, e desta forma
produzir reflexões relevantes para resolver problemas ambientais. Em
termos gerais, a disciplina pode ser definida como o estudo das
inter-relações entre sociedade e meio-ambiente. Mais precisamente,
os sociólogos ambientais estariam interessados nos mecanismos
específicos pelos quais a sociedade e o meio-ambiente se relacionam, e
quais os valores culturais e as crenças que motivam as pessoas para usar
o meio-ambiente em um sentido particular. Esse esforço implica em
equacionar uma dicotomia que historicamente se estabeleceu entre as
ciências sociais e o ambiente natural.
A
relação entre sociologia e meio-ambiente possui dois componentes
fundamentais que a tornam problemática: 1) refere-se a um fato que
é inerente à condição humana, qual seja a sua
duplicidade enquanto ser biológico e ser social (o ser humano ao mesmo
tempo em que é uma dentre as espécies que compõem a
biosfera é, também, um criador de ambientes singulares e
socialmente distintos, o que o conduz, sob o ponto de vista das
ciências,
a uma relação ambivalente). 2) refere-se ao fato de que a
sociologia herdou um duplo legado em relação à biologia
(de um lado o pensamento sociológico é fortemente influenciado
pelas imagens da evolução dos organismos, pela
utilização de conceitos trazidos da ecologia e pela
adoção de posturas metodológicas das ciências
naturais; de outro, o desenvolvimento da teoria sociológica segue um
modelo moldado por reações contra o simplismo biológico).
A origem disso estaria em que os principais teóricos da sociologia
teriam deixado um legado fortemente antropocêntrico incorporado à
sociologia moderna. Suas teorias caracterizaram-se pela primazia
sociológica na explicação dos fenômenos sociais,
resultando, com isto, um tabu implícito contra as variáveis
biológicas, configurando-se em um fator limitante na expansão dos
horizontes da sociologia para a compreensão das relações
entre sociedade e meio-ambiente.
Alonso
e Costa (2002) observam uma ontologia realista entre as principais
teorias
sociais clássicas: elas teriam separado sociedade e natureza para
demarcar com maior facilidade o seu campo de estudo. Isso, em certa
medida,
corresponde a uma das explicações propostas por Hannigan (1995),
que argumenta que, durante os primórdios da sociologia, os
sociólogos já procuravam compreender as limitações
do determinismo na explicação do desenvolvimento e da
mudança social. Contudo, isto não quer dizer que os
clássicos não tenham dedicado atenção a aspectos do
ambiente natural; o meio-ambiente não foi algo desconhecido para os
principais formuladores do conhecimento sociológico. O que ocorreu foi
que o meio-ambiente não foi aceito como um conceito central no
desenvolvimento de suas formulações. Nesse sentido, a
contemporaneidade da Sociologia Ambiental pode ser considerada, também,
como uma crítica aos mestres da sociologia pela falta de
atenção às bases materiais e biofísicas da
existência humana e da vida social.
Quanto
à sua visibilidade social, a emergência da Sociologia Ambiental
está relacionada com o surgimento do movimento ambientalista,
principalmente porque muitos estudos que vieram a constituir a
Sociologia
Ambiental desenvolveram-se a partir do interesse pelo movimento
ambientalista,
quando não pelo próprio ativismo de alguns sociólogos.
Desta forma, a disciplina deve muito de suas características e a sua
própria emergência ao clima sócio-intelectual no qual se
desenvolveu, por volta dos anos 60 e 70. Outra contribuição
importante para a configuração do novo campo foram os estudos
oriundos da Sociologia Rural, que vinha trabalhando há décadas em
pesquisas na agricultura, florestas e usos de parques, dentre muitos
outros
temas relacionados ao ambiente natural. Assim, os sociólogos rurais
estiveram mais preparados para proceder estudos que partissem do
reconhecimento
da importância da base biofísica na estruturação da
sociedade. Além disso, a Sociologia Rural tem contribuído com
estudos importantes sobre diversos povos rurais, abordando as questões
ambientais que os afetam, tais como disponibilidade, acesso, uso,
qualidade e
degradação dos recursos naturais. Além de contar com essas
fontes, a Sociologia Ambiental dos anos 70 recebeu contribuições
da Antropologia Cultural, especialmente de sua vertente ecológica, bem
como de outras áreas do conhecimento que passaram a se interessar por
temas transversais associados à problemática ambiental.
Os enfoques da
Sociologia Ambiental são diversos, em função da
complexidade que implica uma conceituação abrangente sobre o meio
ambiente e a maneira como as pessoas o representam. Buttel (2000)
conceitua
meio-ambiente como sendo as bases físicas e materiais de toda a vida,
incluindo terra, ar e água. Contudo, a Sociologia Ambiental
também pode abordar as questões relativas ao meio-ambiente no
plano estritamente simbólico, focalizando não somente as
condições ambientais de modo concreto, mas também como as
pessoas interpretam e reagem a essas condições.
Há
uma série de questões convergentes e divergentes na Sociologia
Ambiental no que se refere às teorias sociológicas e ao
meio-ambiente. As principais convergências estão relacionadas
às abordagens sobre o meio-ambiente que assinalam que há uma
significativa interação deste com os sistemas sociais e vice-versa.
Desta forma é reconhecido que as estruturas sociais modificam
significativamente o ambiente natural e que, ao mesmo tempo, as
condições ambientais constrangem a natureza e condicionam os
processos de organização social. Conforme analisam Lima e
Portilho (2001), a maioria dos sociólogos ambientais parece concordar
que as sociedades tendem a persistir na agressão ao meio ambiente
(apesar dos sinais de esgotamento que têm sido emitidos), pois as
pessoas
preferem ignorar problemas ambientais a se readaptar a novos
constrangimentos.
Concordam também que os fenômenos ambientais estão se
tornando foco de antagonismos, conflitos e lutas políticas, e que isso
afeta grupos e interesses sociais de forma diferenciada.
As principais
divergências estão relacionadas às diferentes abordagens
teóricas que caracterizam a sociologia e que são encontradas
também no interior da Sociologia Ambiental. Mesmo havendo crenças
comuns sobre a relação entre sociedade e meio-ambiente, há
uma diversidade de perspectivas que tendem a se desenvolver no interior
da
Sociologia Ambiental. Por isto, as diferenças são
inevitáveis quando se trata de abordar as conseqüências da
poluição ou da exploração dos recursos
hídricos, por exemplo. Entretanto, a identificação e a
classificação dos diferentes paradigmas que competem no interior
da teoria sociológica em geral constituem também um objeto de
reflexão e de interesse da Sociologia Ambiental.
Construcionismo social:
tendência analítica da Sociologia Ambiental
Dois fatores
interligados têm contribuído para as tendências
analíticas da Sociologia Ambiental. O primeiro está relacionado
à expansão do seu campo empírico em direção
a três áreas de investigação: a Sociologias da
Ciência, a Sociologia dos Riscos e a Sociologia dos Novos Movimentos
Sociais. O segundo fator é que diversos teóricos sociais
contemporâneos passaram a dar importância à perspectiva
ecológica e às relações socioambientais. Seguindo
essas tendências, é interessante destacar as linhas de estudos que
procuram se articular com a Sociologia Ambiental, como a Sociologia dos
Riscos,
por exemplo, através de interpretações construcionistas. A
relevância desta perspectiva, na qual situamos este artigo, está
na importância que confere ao papel que a cultura e a ciência
desempenham nas relações entre a sociedade e o meio-ambiente. A
perspectiva construcionista na Sociologia Ambiental tem como
preocupação entender o modo como os problemas ambientais
são definidos, articulados e acionados pelos atores sociais.
Para o estudo da
perspectiva construcionista, tomo como referência a obra de John
Hannigan
(1995), que a apresenta como sendo também uma ferramenta para se estudar
os processos de construção social de problemas ambientais.
Segundo este autor, enquanto a maior parte das abordagens sobre meio
ambiente
apresenta a crise ambiental como produto de fatores de dimensão
exógena, como o perigo das novas tecnologias, por exemplo, sua
análise propõe um enfoque centrado nos processos sociais,
políticos e culturais, onde as condições ambientais são
definidas como sendo de riscos inaceitáveis e, portanto,
passíveis de conflito. Ou seja, nesta perspectiva os problemas
ambientais não resultam de condições objetivamente dadas,
que poderiam ser evidenciadas apenas a partir das estimativas dos
peritos, mas
são antes socialmente construídos através de debates e
negociações no espaço público, com a
participação de leigos, inclusive. Além disso,
considera-se que o próprio debate sobre determinadas questões
ambientais, mesmo sob o ponto de vista científico, revela haver mais
incertezas e contradições, inclusive com convicções
irreconciliáveis, do que certezas, tanto nas estimativas, como nas
soluções propostas. Contudo, isto não significa que na
abordagem construtivista, haja uma negação da realidade objetiva
dos problemas e dos riscos ambientais, ou da independência dos fatores
causais da natureza sobre eles. Mas a legitimidade, a relevância e a
prioridade atribuída a estes problemas dependem da atuação
de diversos agentes sociais. Na abordagem construcionista, as análises
das agendas e das políticas ambientais são compreendidas como
produtos finais de um processo social dinâmico de
definições, negociações e
legitimações.
Hannigan (1995:
40-51) expõe um interessante esquema, envolvendo três tarefas,
para a análise do processo de construção social de um
problema ambiental. A primeira tarefa é a montagem de uma
reivindicação ambiental, que deve partir da descoberta inicial e
elaboração ainda incipiente de um problema. Nesta fase é
necessário: nomear o problema, distinguir de outros similares,
determinar as bases científicas, técnicas, morais e legais da
reivindicação, e atribuir quem é responsável por
tomar ações para solucioná-lo. Na pesquisa sobre as
origens da reivindicação é importante para o pesquisador
saber de onde vem a reivindicação, quem a detém ou a administra,
quais os interesses econômicos e políticos que os produtores da
reivindicação representam, e que tipo de recursos eles trazem
para o processo de produção da reivindicação. Uma
segunda tarefa no processo de construção de um problema ambiental
é a apresentação da reivindicação. Uma
reivindicação ambiental precisa tanto chamar a
atenção como também se legitimar. Há diversos modos
de se chamar a atenção, que envolvem desde o uso de
gráficos até a exploração de imagens fortes
relacionadas a acidentes ambientais, por exemplo. Também é
possível provocar a emergência de uma nova questão
ambiental através de um evento, quando: 1) provoca a
atenção da mídia, 2) envolve algum setor do Estado; 3) demanda
decisão governamental; 4) não se apresenta ao público como
sendo uma extravagância; 5) diz respeito ao interesse pessoal de um
número significativo de pessoas. Mas chamar a atenção
não é suficiente para se obter uma nova questão ambiental.
Para isso, um problema ambiental emergente deve ser legitimado em
múltiplas arenas: a mídia, o governo, a ciência e o
público.
Ainda sim, mesmo
quando um problema ambiental é legitimado não significa que
entrará na agenda pública. Diversos fatores podem contribuir para
que uma questão ambiental seja esquecida, principalmente quando exige
alocação de recursos econômicos. A
implementação de uma proposição ambiental requer
assim uma terceira condição, que é a disputa política,
não
somente para obter a sua regulamentação no campo legal, mas
também para tornar efetiva a sua legislação correspondente.
Tal condição sugere que, para uma proposta legislativa obter
apoio, deve satisfazer alguns critérios: os legisladores devem ser
convencidos que a proposta é viável e compatível com os
seus valores; ou seja, para ter sucesso na arena política, uma
reivindicação ambiental precisa combinar uma série de
fatores, especialmente conhecimento e oportunidade. Hannigan (1995:
52-56)
apresenta ainda outros fatores necessários para que a
construção de um problema ambiental tenha sucesso: 1) deve haver
uma autoridade científica para validar as reivindicações;
2) é importante a existência de popularizadores que transformam os
conhecimentos técnicos e científicos em
reivindicações ambientais num sentido pró-ativo; 3) a
mídia deve projetá-lo como algo novo e importante; 4) deve ser
dramatizado em termos simbólicos e visuais; 5) os incentivos
econômicos devem ser visíveis para se tornar ações
positivas.
Recentemente,
a análise social dos riscos passou a ocupar um lugar central na teoria
social. Dois dos mais influentes teóricos sociais contemporâneos
– Anthony Giddens e Ulrich Beck - contribuíram decisivamente para
essa centralidade ao considerarem os riscos, em especial os ambientais e
tecnológicos, como chaves para entender as características, os
limites e as transformações da sociedade moderna. Discutindo a
complexidade dos riscos ambientais, esses autores lançaram nova luz
sobre questões referentes aos conflitos sociais, às
relações entre leigos e peritos, ao papel da ciência e
às formas de fazer e definir a política. Apesar da
temática dos riscos não ser nova nas Ciências Sociais, as
análises sobre ela sempre se mantiveram como uma área mais
restrita de estudo, com ênfase decisiva em sua carga cultural e social.
Nesse sentido, também contrariamente à prática das
análises técnicas dos riscos, que isolam a opinião
individual, as análises provenientes da Sociologia Ambiental não
se perguntam sobre as crenças ou opiniões particulares dos
indivíduos, mas sobre as teorias, os valores e os princípios que
organizam seu mundo, construído e compartilhado socialmente.
Uma das primeiras
críticas às análises técnicas sobre riscos, e marco
inicial para uma abordagem cultural, foi desenvolvida a partir dos
estudos de
Mary Douglas (1966, apud Guivant, 1998). Esta antropóloga estabeleceu as
bases do que passou a ser identificado como a teoria cultural dos
riscos,
segundo a qual as pessoas são organizadoras ativas de suas
percepções, impondo seus próprios significados aos
fenômenos. Posteriormente, Douglas e Wildavsky (1994, apud Guivant,
1998)
trouxeram o tema dos riscos para o campo do debate político e moral e,
nessa abordagem, a seleção dos riscos relevantes, nem sempre com
evidência científica, teria papel esclarecedor pelo fato da escolha
geralmente corresponder a fatores culturais e sociais, ao invés de
reagir diretamente a fenômenos naturais. A compreensão estaria no
fato de que, na estimação desses riscos, ninguém pode
dizer que é um perito.
Ainda que nos
tenhamos beneficiado com os avanços científicos e
tecnológicos, ao abrirem-se novas áreas de conhecimento,
também aumenta a distância entre o que se conhece e o que seria
desejável conhecer. Desta forma, a partir desta perspectiva, temos que
lidar com conhecimentos que são incertos, aspectos que a perspectiva
técnica sobre os riscos não considera ao intelectualizar os
processos decisórios e enfatizar os impedimentos dos leigos,
classificados como irracionais. Nesse cenário, onde há
divergências significativas entre os peritos sobre quais são os
métodos mais apropriados para estimar os riscos, assim como sobre quais
são as margens desejáveis de segurança, valores comuns
levam a medos comuns. As pessoas selecionam determinados riscos como
relevantes
segundo o papel que estes possam ter no reforço da solidariedade social
das instituições das quais elas participam. A
atenção que as pessoas dão a determinados riscos em lugar
de outros seria parte de um processo sociocultural, que dificilmente tem
uma
relação direta com o caráter objetivo dos riscos.
Beck
e Giddens transformaram substancialmente o debate sobre os riscos ao
apresentá-los como centrais para entender a sociedade
contemporânea. Ainda que reconheçam que sempre houve riscos, consideram que os atuais se tornaram de
natureza objetivamente diferenciada. Para ambos, a sociedade
contemporânea caracteriza-se pela radicalização dos
princípios que orientam o processo de modernização
industrial, o que marcaria a passagem da sociedade moderna para a
sociedade da
alta modernidade, conforme Giddens (1997), ou para a modernização
reflexiva e para a sociedade de risco, segundo Beck (1997). Para esses
sociólogos, ainda que com ambigüidades na definição
dos riscos como construção social e cognitiva, as sociedades
pós-industriais, ao contrário das sociedades industriais,
enfrentam riscos ambientais e tecnológicos que não são
meros efeitos colaterais do progresso, mas antes riscos substancialmente
diferentes no que tange às fontes causadoras e à
abrangência de seus efeitos. Essas transformações
não são processadas de forma intencional e política, mas
são o resultado das forças desta mesma sociedade. O progresso
gerado pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia passa a ser
considerado como a fonte potencial de autodestruição, a partir do
qual se produzem novos riscos, difíceis de serem percebidos, cujas
conseqüências são desconhecidas em longo prazo e não
podem ser avaliados com precisão.
A
teoria da sociedade de risco tem como eixo a interpretação das
formas pelas quais se interconectam processos que afetam os estatutos da
ciência e da política. Para Beck (1997), a sociedade passou a ser
um laboratório aberto, fora de controle, e as conseqüências
deste processo levam a uma redefinição da forma e dos
espaços de fazer política. O que era considerado uma esfera
privada, de responsabilidade e criatividade científicas, passa a ser
objeto de debate do que denomina de sub-política. Nesse sentido, a
esfera da sub-política distingue-se da política oficial por
envolver diversos atores sociais que passam a participar do debate
público não apenas como agentes coletivos, mas também como
indivíduos. O conceito de sub-política define, portanto, uma
situação em que atores externos ao sistema político
oficial participam do planejamento social, moldando a sociedade de baixo
para
cima. O fato é que as instituições que amparam essa nova
forma de atuação devem estar preparadas para delegar poder (Beck,
1995), pois a aplicação dessa formulação gera ainda
algumas dúvidas a respeito de sua operacionalização
política.
Nesse
ponto, Giddens (1997: 109) assume um tom menos dramático na sua
análise, além de manter um diálogo mais aberto e
freqüente com a teoria social. Segundo este autor, em uma sociedade
destradicionalizada e que problematiza o futuro, a noção de risco
é chave: viver no universo da alta modernidade é viver num
ambiente de opções e riscos, concomitantemente,
inevitáveis de um sistema orientado para o domínio da natureza e
construção reflexiva da história. Sua análise
abrange as transformações que caracterizam o período da
alta modernidade, a separação do espaço e do tempo, a
pulverização das relações sociais e o reordenamento
reflexivo da ordem social, tanto no plano macrossocial, como também, e
fundamentalmente, na esfera mais íntima das pessoas em seu cotidiano. Ao refletir sobre os riscos da alta
modernidade, os autores esclarecem que não estão propondo que
estes sejam necessariamente sempre maiores que os do passado. Na baixa
modernidade, os riscos dominantes eram externos, ao atingir os
indivíduos por vezes de forma inesperada, mas também podendo
acontecer regularmente, permitindo que fossem calculados para que as
populações pudessem se proteger. A especificidade dos riscos da
alta modernidade é que seriam fenômenos novos, artificialmente
manufaturados, ocasionados pelo próprio desenvolvimento científico
e tecnológico, característico desta época, que podem
provocar grandes conseqüências. Ou seja, quando nos apercebemos do
alcance de tais riscos, pode ser tarde para se evitar as
conseqüências.
Para
Giddens (1991, 1997), a sociedade de risco é uma sociedade altamente
preocupada com o futuro e a segurança. Na “cultura do
risco”, a ciência está desencantada e a certeza de seu
conhecimento parece minada. Isso faz com que, nas decisões cotidianas,
os indivíduos se reapropriem do conhecimento perito, sendo esse
transformado pelos leigos tanto nos espaços da intimidade como nos
espaços políticos. Numa sociedade destradicionalizada, como a da
alta modernidade, a tradição não teria sido
substituída pela certeza científica, mas pela dúvida
radical. Estas transformações individuais vinculam-se a
transformações globais, onde a possibilidade e a necessidade de
escolha sobre nossa biografia se fariam acompanhar de um descrédito
acerca do conhecimento dos peritos, permanentemente sob revisão e
debate. Este processo de autoconstrução biográfica,
distante das influências da tradição, e de
reapropriação e reinterpretação do conhecimento
perito, é denominado de reflexividade.
Beck
(1997) e Giddens (1991, 1997) aproximam-se da abordagem cultural dos
riscos ao
considerarem que as fórmulas científicas para a
estimação dos riscos ambientais levam implícitas
definições sociais, culturais e políticas, envolvendo
interesses de diversos atores sociais. Desta maneira, questões como o
que é aceitável em termos de risco ambiental estão
impregnadas de valores; assim, face ao peso dos julgamentos de valor
envolvidos, os peritos perdem seu papel específico na
delimitação dos riscos. Ambos compartilham com a crítica
à dicotomia entre um conhecimento perito que “determina” os
riscos e uma população leiga que os “percebe”. Nesse
espectro de pós-modernidade, lidar com os riscos leva a uma
redefinição do que se entende por política, diferente da
que caracterizava as estratégias da sociedade de classes na primeira
fase da modernidade. A sociedade de risco implica pensar toda a agenda
política porque pressupõe uma reorientação de
valores e das estratégias para atingí-los.
Ainda que a
política de emancipação continue sendo importante,
é no plano do que Giddens (1997) denomina de “política da
vida” que se discute como devemos viver em um mundo de escolhas e
decisões permanentes sobre o que no passado era visto como natural. Em
sua análise, estaríamos atravessando um período no qual,
pela primeira vez, existiriam condições para a emergência
de valores universais (responsabilidade por gerações futuras, por
exemplo) dentro de uma ética de responsabilidade tanto individual quanto
coletiva. O movimento ambientalista faz parte dessa política da vida,
junto com práticas em outras áreas políticas, como as
econômicas e de trabalho. Contudo, o destaque político que as
questões ambientais têm conquistado nos últimos anos
é relacionado com um acúmulo de evidências sobre as
conseqüências de práticas humanas consideradas
predatórias.
Por
outro lado, as alternativas de Beck são menos difusas, mais normativas e
mantêm no eixo político central as questões de risco. O
autor identifica duas fases da sociedade de risco, sendo que a primeira
corresponde à transição da sociedade industrial à
sociedade de risco, processada de forma impremeditada: não se trata de
uma opção, mas de uma dinâmica de
radicalização da modernidade, a qual passa a se confrontar com
seus próprios efeitos e perigos, que não podem ser controlados ou
assimilados segundo os parâmetros da sociedade industrial. Esse processo
é denominado por Beck como de “modernização
reflexiva”. Os riscos da modernidade ainda são gerados sem se
tornarem assunto público ou o centro de conflitos políticos.
Na
segunda fase, mais propícia a novas estratégias políticas,
emerge um quadro diferente, com algumas das conseqüências da
modernidade industrial sendo questionadas política e socialmente por
organizações de interesse ambiental e pelo sistema
jurídico e político. Aqui, o movimento ambientalista não
necessariamente se constitui como um sujeito privilegiado, porque
falaria em
nome de uma natureza que não existe mais, que seria por sua vez
pressuposta como parte do modelo da sociedade que se quer seguir. O que
este
movimento não consegue é ver a independência entre os processos
de destruição e o nível de protesto político, que
é mediado simbólica e culturalmente. Não é,
portanto, nem a evidência do dano nem o reconhecimento científico
que geram as ações dos Verdes, mas sim suas idiossincrasias
socioambientais e seus valores culturais.
Um
aspecto fundamental que influenciaria subjetivamente o reconhecimento
dos danos
ambientais como relevantes e significativos é justamente a
percepção da disponibilidade de alternativas. Quando as pessoas
se encontram em situações nas quais as alternativas são
difíceis de visualizar, tendem a negar a sua condição de
atingidos. Por isso, nem sempre os protestos emergem entre os mais
ameaçados, mas entre setores de classe média, com suas percepções
sobre saúde, segurança e lazer. Alguns destes setores podem
sentir-se ameaçados de perder o bem-estar conseguido. A partir
daí, podem apresentar sistematicamente a questão ambiental como
central no debate social contemporâneo, tornando-a dependente de normas
legais
debatidas e aprovadas a partir de acordos negociados entre diversos
atores
envolvidos.
Por fim, para ambos
os teóricos, é inviável procurar resolver problemas
relacionados aos riscos manufaturados com mais modernidade, ou com
conhecimentos científicos e tecnológicos equivalentes aos que os
provocaram. Há elementos políticos irredutíveis presentes
nas decisões sobre como lidar com os riscos, e estes devem ser
discutidos nesse plano, explicitando-se os valores culturais e sociais
envolvidos de modo a redefinir os padrões de produção do
conhecimento científico, bem como a atuação dos peritos.
Mudanças institucionais: a
sub-política dos Verdes pirajuenses
A história do
município de Piraju (SP) se confunde com a história do
desenvolvimento da
matriz
hidroenergética
nacional. Banhada pelo rio Paranapanema e cortada por outros
tributários, o aproveitamento de seu potencial energético teve
início já na primeira década do século passado. Em
1905 foi inaugurada a luz elétrica municipal a partir da
construção da Usina Hidroelétrica Monte Alegre, distante
cinco quilômetros do centro da cidade. Posteriormente, para atender a
uma
economia cafeeira em expansão, em 1913, começou a funcionar a
Usina Hidroelétrica Boa Vista, fornecendo energia inclusive para uma
linha de bonde, com 26 quilômetros de extensão, entre o ramal da
Estrada de Ferro Sorocabana e o município de Sarutaiá (SP),
passando pelas ruas de Piraju. Em 1937, foi concluída a Usina
Hidroelétrica Paranapanema, um projeto de grande porte para a época.
Sua barragem encontrava-se praticamente dentro da cidade, num trecho do
rio
Paranapanema que separava a Vila Tibiriçá da área central
da cidade. Na década de 60, foi a vez da construção da
Usina Hidroelétrica Jurumirim.


Os Verdes rememoram
um fato considerado paradigmático na mudança de postura da
sociedade para com a questão ambiental, especificamente as
questões hidroelétricas, ocorrido entre o final dos anos 80 e
início dos anos 90. Na época, a Companhia Brasileira de Alumínio
(CBA) planejava a construção da usina Piraju através de um
projeto que previa o desvio do rio Paranapanema, o que reduziria a sua
vazão no trecho urbano de 300m3/s para 10 m3/s. Se
essa obra fosse levada a cabo havia o risco de deterioração da
qualidade das águas no local e o temor de surgimento de algumas
doenças, entre elas a leishmaniose. A partir dessa
percepção, esse grupo realizou pesquisa na Secretaria Estadual do
Meio Ambiente do Estado de São Paulo (SMA) e descobriu, por exemplo, que
o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) (Brasil, 1986) da Usina Piraju já
havia sido realizado e encontrava-se com parecer favorável. Nesse
período, algumas mudanças institucionais no âmbito federal
já estavam em andamento e, a partir do conhecimento dessas
mudanças, os Verdes passaram a denunciar a condução ilegal
do processo, argumentando sobre a obrigatoriedade de realização
de audiência pública para a obtenção da
licença ambiental.
Convenceram a
mídia, obtendo apoio para a divulgação dos eventos que
programavam, e em poucos dias já haviam conseguido influenciar a
Câmara de Vereadores, que realizou uma série de sessões
destinadas a discutir o projeto e a envolver a comunidade. Em um
crescente, o
debate recebeu a adesão da Maçonaria e, posteriormente, da
Organização Pirajuense de Educação e Cultura
(OPEC). Por último, a Delegacia Regional de Ensino passou a promover
palestras nas escolas da rede pública. Na cidade, em poucos dias, partes
do EIA constantes no processo estavam popularizadas, e a partir daí os
questionamentos sobre a construção da Usina Piraju passaram a
ser, também, de envergadura política. O resultado desse conflito
foi a alteração do projeto por parte da CBA, reconfigurando-o a
um modelo tradicional que foi concluído em 2002 após intensa
negociação com a comunidade. De certa forma, a presença de
outros atores sociais junto às demandas dos Verdes, agremiados a partir
de novas alianças políticas, deu maior visibilidade à
condução das questões socioambientais provenientes da
construção hidroelétricas no município. Nesse
ponto, observa-se que a necessidade de mobilização da comunidade
esteve baseada, segundo os Verdes, na descrença quanto à
possibilidade de interferência de modo individual no processo de
licenciamento ambiental.
Contudo, na
década de 1990, amadureceram-se novas formas de gestão dos recursos
hídricos, e entre elas observa-se a estruturação de um
marco jurídico regulatório que previu maior
participação social nos processos decisórios. No
âmbito federal foi sancionada a Lei nº 9.433/97 (Brasil, 1997), que
instituiu o Plano Nacional de Recursos Hídricos, e sancionado o Decreto
nº 2.162/98 (Brasil, 1998), que criou o Conselho Nacional de Recursos
Hídricos. No plano estadual, foi sancionada a Lei nº 7.663/91
(São Paulo, 1991), que instituiu a Política Estadual de Recursos
Hídricos e criou o Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos
Hídricos. Também, a partir desse modelo de gestão, a
Agência Nacional de Águas (ANA) (Brasil, 2000) passou a ser
responsável pela emissão de outorgas de uso dos recursos
hídricos, bem como de concessões preliminares para uso, como as
reservas de disponibilidade hídrica. Os Verdes rapidamente compreenderam
as mudanças que estavam em curso, exigindo maior
comunicação por parte do poder público sobre os eventos
socioambientais que se espreitavam para o município. No limite, os
Verdes desejavam, a partir da década de 90, participar das
decisões que seriam tomadas envolvendo a construção de
usinas hidroelétricas no município, assumindo mesmo um papel na
condução das questões socioambientais. Sob a ótica
de Beck (1997), os Verdes tenderam a se tornar independentes dos
processos
políticos tradicionais, partindo para um tipo de ação
propícia da alta modernidade, a sub-política.

Entretanto, mesmo
diante desses eventos, a CBA entrou com processo junto à Agência
Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) sem anúncio público,
e, dando continuidade a seus planos, solicitou aprovação da planta
básica da Piraju II, a partir do aproveitamento hidrelétrico
Araras, o que representaria, segundo os Verdes, o alagamento do que era
considerado o último trecho de curso natural do rio Paranapanema. Diante
dessa ameaça, o grupo voltou a se articular no intuito de proteger o que
era considerado um patrimônio natural e cultural do município.
Sentindo o bom momento de aproximação com as forças
conservadoras, naquilo que Giddens (1997) vai denominar de “novos
alinhamentos políticos”, os Verdes propuseram ao executivo, com a
aprovação dos líderes rurais, a criação de
um parque municipal exatamente no local que a empresa intencionava a
nova
usina, convencendo-os através de argumento bastante simples: caso o
projeto Piraju II fosse aprovado, a presença de um parque no local
contribuiria para que a Secretaria Estadual do Meio Ambiente indeferisse
o
pedido de licença ambiental.
Alguns dias depois, o
projeto de lei que criava o parque foi levado ao Prefeito, que, em
regime de
urgência, o remeteu à Câmara de Vereadores, onde foi
aprovado por unanimidade, dando origem à lei nº 2.634, de 26 de
junho de 2002, que criou o Parque Natural Municipal do Dourado (Piraju,
2002).
A criação desse parque pode ser considerada como o primeiro
instituto jurídico construído socialmente na tentativa de se obstruir
o projeto Piraju II. Posteriormente, o Conselho Municipal do Meio
Ambiente e
Patrimônio Cultural, composto, inclusive, por alguns membros do grupo
Verde, baixou a Resolução nº 01/2002 (Piraju, 2002), que
aprovou o
tombamento do trecho de sete quilômetros de calha natural do rio
Paranapanema como patrimônio ambiental do município, considerado
como dotado de elementos de valor cênico, paisagístico e cultural.
Estava construído o segundo instituto jurídico local.
Em
julho de 2002 o reservatório da Usina Piraju começou a ser
formado. Ao passo que o nível das águas superava o máximo maximorum, ampliava-se a percepção local da
CBA como empresa ambientalmente irresponsável, sendo acusada de erro
técnico no cálculo da área alagada. Os Verdes divulgaram
diversas fotos que passaram a circular na cidade com imagens de árvores
submersas e início de processos erosivos na foz de alguns
tributários. A dramatização imposta por essas imagens
sensibilizou até mesmo outros atores sociais que estavam
insensíveis à questão. Em seguida, a Câmara de
Vereadores iniciou um período de debates que se estendeu por algumas
semanas, culminando, em 12 de setembro de 2002, na aprovação da
Lei nº 2.654, que fixou um
interregno de vinte anos entre o término de construção de
uma usina hidroelétrica no município e o início de
construção de outra, com o objetivo de possibilitar correta
análise do impacto da obra, assim como garantir às
gerações futuras meios de decidir sobre a forma de sua
preservação (Piraju, 2002). Estava criado o terceiro
instituto jurídico construído com o objetivo de obstruir a
construção de novas usinas hidroelétricas na localidade. A
partir desse conjunto jurídico, a SMA realizou consulta ao executivo e
em seguida indeferiu ambientalmente o projeto Piraju II.
A
partir de 2003, o conflito tomou o rumo dos bastidores. Mesmo diante
desse
conjunto jurídico local, somado ao indeferimento estadual, a empresa
não engavetou o projeto. Aproveitando-se dos labirintos
burocráticos e da baixa comunicação entre a SMA e as
agências ANA e ANEEL, o processo de solicitação de outorga
preventiva tramitou junto à ANA e culminou na Resolução
ANA nº 460/2003 (Brasil, 2003), que declarou
reservada a disponibilidade hídrica com a finalidade de possibilitar o
aproveitamento hidrelétrico Piraju II. Nesse ponto é
interessante observar, que no inciso IV do artigo 3º, esta
Resolução infere que, por
se caracterizar como outorga preventiva, a mesma poderia ser suspensa em
caso
de indeferimento de Licença Ambiental, fato que já estava
consolidado. Mesmo assim a ANEEL, por meio da Resolução
ANEEL nº 227/2005 (Brasil, 2005), autorizou a construção do
empreendimento, para espanto da comunidade e, principalmente, dos
Verdes.
Concomitantemente
ao andamento destes processos, a cidade debatia o seu modelo ideal de
plano
diretor, quando os Verdes puderam exercer considerável influência
na formatação e na sanção da Lei nº 2.792
(Plano Diretor) (Piraju, 2004). Se nos artigos iniciais esta Lei
apresentou as
coordenadas para um planejamento cuidadoso e refletido para a
comunidade,
conforme se avança no texto, percebe-se diversas objeções
às questões hidrelétricas. Observa-se nesse documento, por
exemplo, a quantidade de vezes em que o trecho do rio à jusante da Usina
Paranapanema aparece como ‘patrimônio cultural’. Formatava-se
assim o quarto instituto jurídico-reflexivo local.
Nesse
período, novas informações sobre problemas socioambientais
que estavam ocorrendo na bacia de inundação da Usina Piraju foram
popularizados pelos Verdes na cidade e contribuíram para generalizado
mal estar entre munícipes. A indignação de novos atores
sociais contribuiu para o surgimento de uma percepção local de
que, moralmente, algo deveria ser feito. Nesse sentido, em setembro de 2004, a Ordem dos
Advogados
do Brasil (OAB), através de sua 112ª Subseção de
Piraju, protocolou representação contra a CBA no
Ministério Público Estadual (MPE) através da Promotoria de
Justiça de Piraju. O texto que compôs a redação da
referida representação apresenta profunda relação
com a retórica dos Verdes, o que corrobora com nossa análise
sobre as ações sub-políticas que estavam em andamento. A
partir daí, o MPE acatou a representação e instaurou o
Procedimento Preparatório de Inquérito Civil nº 52/04
(São Paulo, 2004).
No
início de 2005, a
Diretoria Regional do DEPRN designou um engenheiro agrônomo a realizar a
vistoria técnica no reservatório da Usina Piraju para
verificação in loco do cumprimento das exigências
ambientais constantes na Licença de Operação, em companhia
de um Técnico Ambiental da CBA. O que o enviado do DEPRN encontrou nos
locais foi transmitido ao MPE através do Ofício DEPRN/ETOU
nº 38/05, e o seu conteúdo deu conta de expor graves problemas
ambientais em andamento. Posteriormente, a empresa recebeu
notificação do MPE para responder os termos da
representação e do laudo pericial. Esse
documento também exigiu do
empreendedor corrigir, de imediato, as
irregularidades, sob pena de responsabilização civil pelos danos
causados ao meio-ambiente. Em 7 de junho de 2005, a CBA enviou
resposta
ao MPE, quando procurou responder sobre possíveis falhas no cumprimento
das condicionantes exigidas pelo Departamento de Avaliação de
Impacto Ambiental (DAIA) da SMA para a obtenção da Licença
de Operação (São Paulo, 2002).
Novamente, nesse
período, os Verdes vinham
reclamando do pouco interesse da edilidade na questão. Dessa maneira,
foi-lhes organizado um evento que previu a apresentação de uma
Monografia defendida em um curso de Pedagogia da OPEC, que versava sobre
a importância
cultural do rio Paranapanema para a disciplina de Educação
Ambiental na rede municipal. Depois desse evento, a Câmara de Vereadores
se pronunciou diretamente ao MPE, solicitando informações sobre
os problemas que vinham ocorrendo na área de influência da Usina
Piraju. Novamente o MPE foi ‘incomodado’ pelos Verdes, que a essa
altura estavam refinados ao estilo sub-político de agir,
especializando-se em competir com o empreendedor pela via do
conhecimento,
desmonopolizando o papel dos peritos e provocando as instituições
à ação. Nesse episódio ficou claro que a
tática dos Verdes foi a de provocar o MPE local através da
mediação da Câmara de Vereadores.
Em outro espectro,
nesses mesmos dias a mídia
ampliou a sua estratégia de persuasão para conquistar
negócios com a CBA. A expectativa para novos contratos de
anúncios era grande, mas, na medida em que os negócios não
foram fechados, a imprensa local se revezou na pressão junto ao grande
grupo. Ao passo que a Folha de Piraju investiu em notícia sobre a
importância
das corredeiras do rio Paranapanema (Folha de Piraju, 2005), o
Observador foi
mais agressivo ao publicar que a Vigilância Epidemiológica
constatara trinta e três vezes mais casos de leishmaniose em Piraju para
o período entre 2001 e 2003. Nessa reportagem, havia a
indicação de que a construção da Usina Piraju teria
contribuído significativamente para esse aumento (O Observador, 2004).
Posteriormente, o resultado da pressão parece ter surtido efeito, pois
os noticiários locais foram inundados por notícias sobre a sua
pujança da CBA e suas preocupações socioambientais.
Esse marketing foi
percebido pelos Verdes como
estratégia do empreendedor para reconquistar aliados na comunidade. Como
contraponto, novamente procuraram levar a disputa socioambiental para um
terreno favorável ao estilo sub-político: articularam
reunião com o Ministério Público Federal (MPF) de Ourinhos
(SP), quando convenceram o Procurador sobre as irregularidades das
resoluções
da ANA e da ANEEL. O alvo não era mais a empresa, mas sim as suas
conquistas institucionais, consideradas ilegais. Obtiveram do MPF o
compromisso
de notificação das agências para que atentassem ao indeferimento
deliberado pela SMA. Contudo, nesse período, a mais importante conquista
institucional se deu a partir de uma ação sub-política
exemplar: de posse dos documentos que embargavam a construção da
Usina Piraju II, os Verdes articularam visita à Procuradoria Geral da
ANA, onde protocolaram Documento ANA nº 00000.007340/2006, que originou o
Processo ANA 02501.000641/2006. Em seguida, e até para surpresa do
grupo, a ANA publicou a Resolução nº 212, em 15 de maio de
2006, que declarou suspensos os efeitos da antiga resolução de
outorga. Esse fato foi muito comemorado pelos Verdes, que solidificaram a
luta
socioambiental pela via sub-política interpondo exigências legais
e obstáculos institucionais no caminho do empreendedor.
Não obstante a
construção social
dos problemas ambientais e das ações sub-políticas, a
análise desse estudo de caso é concluída com as principais
ações envolvendo as disputas ocorridas do primeiro semestre de
2007. Nesse período, o conflito se ampliou significativamente e as
primeiras notícias demonstravam que a CBA novamente se articulava junto
à municipalidade no sentido de destravar o arcabouço
jurídico local através da renovada Câmara de Vereadores.
Para o intento, o novo executivo e a CBA entenderam que, legalmente, o
melhor
caminho seria o da revisão do Plano Diretor Municipal, através da
montagem de um Fórum Popular para apresentação de
proposições que visassem a alteração de alguns
artigos, principalmente aqueles que buscavam preservar o trecho de
corredeiras
do rio Paranapanema. Os Verdes sentiram que havia chegado o momento de
testar
socialmente suas formulações e articularam a presença de
simpatizantes à causa durante a realização do
Fórum.
Nesse espectro de
enfrentamento, o debate foi
tumultuado logo na primeira reunião, quando da leitura de uma proposta
que previa a revogação do arcabouço regulatório
protetor do rio, apresentada por
uma associação de moradores de bairro altamente controlada pelo
executivo. Essa proposta foi contestada, inicialmente, por um membro da
própria associação, que denunciou abertamente não
ter conhecimento em que circunstâncias tal documento fora elaborado,
causando mal-estar até entre os membros pró-Usina que estavam
presentes. Por se tratar-se de articulação escusa envolvendo a
CBA, membros do executivo e a associação de bairro, os Verdes
partiram para um tipo de ação mais tradicional: dada a gravidade
do fato, procuraram a Polícia Civil e registraram queixa de falsidade
ideológica e formação de quadrilha. Alguns dias depois o
Fórum Popular rejeitou definitivamente a proposta para
revogação daqueles institutos que protegiam o rio.
Considerações finais
Finalizando, é cabido
mencionar que esse
episódio envolvendo a CBA revitalizou o debate ambiental na comunidade.
No limite, os Verdes procuraram evidenciar a maneira como a questão
vinha sendo conduzida na comunidade, pois, em suas análises, seria
impensável permitir-se negociações com uma empresa
ambientalmente insensível, e que se comportava de maneira a buscar maior
produção de energia escondendo os desastres impetrados ao
ambiente onde atua. Não obstante a esse constrangimento, a
intenção da empresa, com a anuência da ANEEL, continua viva
no município, apelando talvez para a tática da insistência,
julgando que “água mole em pedra dura, tanto bate até que
fura”. Entretanto, diante da reflexividade social intrínseca
à sociedade de risco, e se depender do empenho e da versatilidade dos
sub-políticos Verdes locais, o ditado popular, em tempos de
reinvenção da política, poderá ser dito da seguinte
maneira: “pedra mole em água dura, tanto fura até que não
bate”.
Com esse relato dos
embates socioambientais ocorridos
entre os Verdes e a CBA nas diversas esferas políticas, encerramos esse
artigo, cuja proposta foi analisar, através de uma
exposição teórica e de um estudo de caso, a ótica
da sub-polítca proposta por Beck (1997). Pôde-se observar, ao
longo do texto, a construção social do ambientalismo local e a
habilidade sub-política dos Verdes em identificar mudanças no
marco jurídico e regulatório que permitiram uma
atuação mais individualizada, e de maior alcance. Em
última análise, o grupo demonstrou que é possível
participar do planejamento social, alterando planos e projetos de
grandes
grupos empresariais, mesmo estando fora do sistema político tradicional.
*Prof.
Dr. José Luiz F.
Cerveira Filho Coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Meio-Ambiente e Desenvolvimento -
PPGMADE Departamento de Ciências Sociais - DECISO Universidade Federal
do
Paraná - UFPR
Referências
ALONSO, A.;
COSTA, V. Ciências Sociais e meio-ambiente no Brasil: um balanço
bibliográfico. Boletim Informativo Bibliográfico, nº
53, 1º semestre, 2002.
BECK, U. A
reinvenção da política: rumo a uma teoria da
modernização reflexiva. In: BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH,
S. Modernização Reflexiva: política,
tradição e estética na ordem social moderna. SP:
Unesp, 1997.
BRASIL. Conselho Nacional de
Meio Ambiente.
Resolução Conama n.
01,
de 23 de janeiro de 1986. Dispõe sobre a obrigatoriedade de
realização de EIA/RIMA para obtenção de
licença ambiental. Diário Oficial da União. Brasília,
17 de fevereiro de 1986.
_______.
Lei n. 9.984, de 17 de
julho de 2000. Dispõe
sobre a criação da Agência Nacional de Águas –
ANA. Diário Oficial da União. Brasília, 18 de julho
de 2000.
_______. Lei n. 9.433, de 08 de
janeiro de 1997.
Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o
Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Diário
Oficial da União, Brasília, 09 de janeiro de1997.
_______. Lei n. 9.427, de 26 de
dezembro de 1996.
Institui a Agência Nacional de Energia Elétrica. Diário Oficial
da União. Brasília, 26 de dezembro de 1996.
BUTTEL, F. Sociologia
Ambiental, qualidade ambiental e
qualidade de vida: algumas observações teóricas. In:
HERCULANO, S. Qualidade de vida e riscos
ambientais. Niterói: UFF, 2000.
FOLHA DE PIRAJU, 1971-2007.
GIDDENS, A. As
Conseqüências da Modernidade. SP: Unesp, 1991.
_______. A vida em uma sociedade
pós-tradicional. In: BECK,
U.; GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização Reflexiva:
política, tradição e estética na ordem social
moderna. SP: Unesp, 1997.
GUIVANT, J. S. Trajetórias na
análise
dos riscos: da periferia ao centro da teoria social. Revista de
Informações Bibliográficas. n. 46, s/l: ANPOCS,
1998.
HANNIGAN, J.
A. Sociologia Ambiental: a formação de uma perspectiva. Lisboa:
Inst.Piaget, 1995.
JORNAL O
OBSERVADOR, 1992-2007.
LIMA, G. F.
C.; PORTILHO, F. A Sociologia Ambiental no contexto acadêmico
norte-americano: formação, dilemas e perspectivas. Teoria
& Sociedade, n. 7, SP, 2001.
PIRAJU.
Prefeitura Municipal. Lei n. 2.792, de 08 de junho de 2004. Institui o
Plano
Diretor da Estância Turística de Piraju. Departamento
de
Administração. Piraju, 08 de junho de 2004.
_______.
Prefeitura Municipal. Lei n. 2.654, de 12 de setembro de 2002. Fixa o
interregno de 20 anos para construção de usina hidrelétrica
de iniciativa privada no território do Município de Piraju e
dá outras providências. Departamento de
Administração. Piraju, 12 de setembro de 2002.
_______.
Prefeitura Municipal. Lei n. 2.634, de 26 de junho de 2002. Cria o
Parque
Natural Municipal do Dourado e dá outras providências. Departamento
de Administração. Piraju, 26 de junho de 2002.
_______.
Prefeitura Municipal. Lei n. 1.752, de 24 de julho de 1992. Dispõe sobre
a criação do Conselho Municipal de Meio Ambiente e
Patrimônio Cultural de Piraju. Departamento de
Administração. Piraju, 26 de junho de 2002.
SÃO
PAULO. Ministério Público do Estado de São Paulo. Procedimento
Preparatório de Inquérito Civil n. 52. Piraju: PJP/MPE, 2004.
_______.
Secretaria do Meio Ambiente. Licença Ambiental de Operação
n. 00104. Diário Oficial do Estado de São Paulo. São
Paulo, 25 de julho de 2002.
Nenhum comentário:
Postar um comentário